Língua dos Anjos? Sobre a Pentecostalização dos dons espirituais

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Acredito que o evangelicalismo contemporâneo foi completamente pentecostalizado pela idéia de que se o Espírito Santo estiver ativo e operante, então testemunharemos sinais extraordinários como revelação direta, dons especiais e euforia emocional. Além de receberem nova revelação do Espírito Santo, muitos cristãos professos também acreditam que Ele continua a capacitar os crentes com dons especiais, como cura e línguas estranhas.

O primeiro registro de línguas nas Escrituras é Atos 2: Esse é o texto mais importante para discernir a natureza deste dom. Observe, primeiro, que Lucas afirma no versículo 4 que os apóstolos e 120 seguidores “começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem”. A palavra “línguas” é o termo grego glossais, que é a palavra usada para descrever o órgão literal língua na boca, portanto, neste ponto o texto não está claro sobre o que exatamente “línguas” significa.

Mas no versículo 8, os judeus dizem: “E como é que ouvimos, cada um de nós na sua própria língua nativa?” Aqui a palavra “língua” é o termo dialeto, do qual obtemos nossa palavra portuguesa “dialeto”, e é claro que eles estão se referindo a línguas estrangeiras conhecidas – diferentes “dialetos” das várias nações de onde vieram, listados nos versículos 10–11.

Ademais, esses mesmos judeus dizem no final do versículo 11: “nós os ouvimos falar em nossas próprias línguas as obras poderosas de Deus”. A palavra “línguas” aqui é a mesma do versículo 4 – glossais, mas é claro que eles a estão usando de forma intercambiável com dialeto – “línguas” no versículo 8. Em outras palavras, o que é aparente nesta primeira aparição de línguas nas Escrituras é que “línguas (glossais)” e “línguas (dialecto)” são exatamente a mesma coisa. Elas são intercambiáveis. Portanto, Falar em línguas é a habilidade de falar um idioma conhecido, cujo interlocutor não conhece.

Falar em línguas é a habilidade de falar um idioma conhecido, cujo interlocutor não conhece

Esta definição bíblica de línguas como falar línguas conhecidas é muito diferente da prática de línguas pelos pentecostais hoje. Na verdade, até mesmo Charles Parham, o pregador ligado ao primeiro suposto caso de línguas que desencadeou o movimento pentecostal moderno, afirmou que Agnes Ozman falava em chinês, embora isto seja falso. Até mesmo D. A. Carson, um continuista, reconhece que “ As línguas modernas são lexicamente pouco comunicativas e os poucos casos relatados [falar em línguas estrangeiras] são tão mal atestados que nenhum peso pode ser atribuído a eles.

Como acontece com a questão da revelação extraordinária, os continuistas moderados também defendem a continuação do dom de línguas. No que se refere a revelação, muitas vezes o fazem com base no fato de que existem dois tipos diferentes de línguas. Eles concordam que as línguas em Atos 2 eram conhecidas, mas insistem que as línguas em 1 Coríntios 14 eram diferentes. Por exemplo, Sam Storms argumenta:

Atos 2 é o único texto do Novo Testamento onde a fala em línguas consiste em: “línguas estrangeiras não conhecidas pelos interlocutores”. Este é um texto importante, mas não há razão para pensar que Atos 2 é o padrão, ao invés de 1 Coríntios 14. Esse último é o padrão pelo qual todas as ocorrências do discurso em línguas deve ser julgado.

De acordo com Storms e outros continuistas, o Espírito continua a conceder o dom de línguas hoje como meio de devoção pessoal a Deus. Na verdade, Storms diz que os cristãos têm “uma obrigação moral e bíblica” de buscar dons espirituais como estes.

Levante e ande!

Os carismáticos modernos também afirmam que o Espírito ainda concede o dom da cura. Como acontece com a revelação e as línguas, é importante definir biblicamente o que é cura. Ao examinar casos de cura nas Escrituras, fica claro que as curas nas Escrituras foram instantâneas. Uma vez que uma pessoa fosse declarada curada, ela não precisava esperar um período de tempo antes de ficar completamente sã. Essa cura ocorreu em um processo gradual. Além disso, as curas são sempre de doenças intratáveis, como cegueira, deficiências ou morte. As curas também foram completas e reverteram todos os danos causados ​​por qualquer condição que o indivíduo tivesse.

Todas as curas na Bíblia eram imediatas e intantâneas

O que também fica evidente nas curas bíblicas é que os que curam não o fazem por seu próprio poder ou mesmo por sua própria iniciativa. Na verdade, eles não têm controle sobre o momento em que as curas são realizadas. Por exemplo, embora o apóstolo Paulo tenha realizado muitos milagres espetaculares de cura, ele recebeu um espinho na carne até o fim da sua vida (2 Coríntios 12:7-9). Aparentemente, ele também não conseguiu curar Epafrodito, embora tenha orado por ele (Fp 2.25-30). Em outras palavras, nenhum indivíduo tinha permanentemente “o dom de cura”, mas o Espírito capacitou os indivíduos com a capacidade de curar em algumas circunstâncias, de acordo com a sua vontade divina.

É claro que, por um lado, estão os curandeiros como Aimee Semple McPherson, Oral Roberts e Bennie Hinn, que realizam reuniões de cura extravagantes, repletas de “cair no espírito” um caos frenético. A “cura” relatada em tais reuniões é totalmente suspeita.

Como acontece com a revelação e as línguas, os carismáticos ortodoxos mais moderados também ensinam que o dom de cura dado pelo Espírito continua até hoje. Por exemplo, Sam Storms ensina que o Espírito dá a alguns indivíduos, em determinadas circunstâncias, uma medida especial de fé pela qual as suas orações podem produzir cura sobrenatural.

Menciono exemplos de carismáticos mais moderados, como Sam Storms, não para agrupá-los com os hereges da teologia da prosperidade – longe disso. Esses homens são professores evangélicos ortodoxos, cujos escritos em muitas áreas considero úteis. Em vez disso, eu os cito para ilustrar o que acredito ser uma confusão hoje, mesmo entre indivíduos ortodoxos, sobre como devemos esperar que o Espírito Santo opere hoje em dia.

Dons de Transição

É claro que existe um amplo debate hoje sobre se e quais desses dons continuam hoje. Como discuti anteriormente a respeito da revelação divina direta, há uma razão muito simples pela qual acredito que os dons do Espírito cessaram: eles eram inerentemente de natureza transitória. O Espírito deu revelação e capacitou indivíduos-chave durante importantes períodos de transição no desenvolvimento progressivo do plano redentivo de Deus.

Acontece o mesmo com línguas e cura. As línguas, como demonstrado, é a capacidade de falar em línguas conhecidas, o propósito era inerentemente de natureza transitória. Temos que lembrar que até a época do Novo Testamento, o foco de Deus estava exclusivamente no povo de Israel. Na Torre de Babel, Deus confundiu as línguas e, daquele ponto em diante, o foco de seu amor e de sua obra se concentrou nos descendentes de Abraão, Isaque e Jacó. A salvação veio dos judeus (Jo 4:22).

Mas a partir de Atos 2, a membresia na igreja de Jesus Cristo não está limitada a uma nacionalidade. Este era um conceito completamente estranho para um judeu, e o dom de línguas é, portanto, um sinal para os judeus de que eles não são mais o foco exclusivo da atenção e do amor de Deus – agora não há diferença entre judeus e gentios – o mesmo Senhor é Senhor de todos e abençoa ricamente todos os que o invocam. É um sinal para eles de que Deus estava mudando seu foco para às nações gentias.

Na verdade, Paulo enfatiza especificamente esse ponto em 1 Coríntios 14, quando cita Isaías 28:11-12 no versículo 21: “Na Lei está escrito: Por pessoas de línguas estranhas e por lábios de estrangeiros falarei a eles. Mesmo assim, eles não me ouvirão, diz o Senhor.’” O aparecimento destas “línguas estrangeiras” durante os primeiros anos da igreja foi um pronunciamento de maldição sobre a nação de Israel, e significou para todos que a salvação não era mais realizada dentro de um grupo ético.

Por esta razão que mais duas vezes Deus envia o dom de línguas no livro de Atos. A segunda aparição de línguas ocorre no capítulo 10, onde o Evangelho chega pela primeira vez aos gentios. Pedro proclama o evangelho a Cornélio e sua família no versículo 34, dizendo: “Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; Mas que lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo”. Mas lembre-se, até mesmo Pedro inicialmente hesitou em levar o evangelho aos gentios, então Deus deixou claro que esses gentios convertidos eram de fato parte da igreja, e ele fez isso dando-lhes o mesmo sinal que havia dado em Atos 2. No versículo 46, Lucas registra que esses gentios convertidos começaram a falar em línguas, evidenciando que eles também haviam sido batizados pelo Espírito.

A terceira aparição de línguas em Atos 19 é semelhante. Embora Cornélio e sua família fossem gentios convertidos em Israel, no capítulo 19 Paulo encontra alguns discípulos gentios em Éfeso que haviam sido batizados no batismo de João, mas aparentemente ainda não tinham ouvido falar de Cristo. Ao crerem em Cristo, eles começaram a falar em línguas e a profetizar, evidenciando que os gentios convertidos fora de Israel também faziam parte do corpo de Cristo.

O dom de línguas, como é evidente nas três aparições em Atos, juntamente com o que Paulo diz em 1 Coríntios 14, tinha um propósito muito específico: servia como um sinal de que a membresia na igreja não tinha distinção nacional. Além disso, não há suporte bíblico para o argumento de que as línguas em 1 Coríntios 14 eram diferentes daquelas em Atos 2, e não deveria nos surpreender que a única menção de línguas ou profecia nas epístolas do Novo Testamento esteja em 1 Coríntios, a primeira carta paulina. Na época em que ele escreveu para a maioria das outras igrejas, esses dons já haviam servido ao seu propósito e cessado.

Os dons miraculosos sinalizam que os estrangeiros estão incluídos como Povo de Deus

O dom da cura também foi transitório. Atos 2:43 disse especificamente que os sinais e maravilhas estavam sendo feitos pelos apóstolos. Na verdade, 2 Coríntios 12:12 diz que os milagres eram marcas de alguém que era apóstolo. Existem trinta e três milagres no livro de Atos. Vinte e seis deles são realizados por apóstolos, e o restante é feito por anjos, exceto alguns milagres feitos por Estêvão, Filipe e Barnabé, cada um deles proeminentes fundadores da igreja.

Todas essas informações nos levam a concluir certamente que os sinais e maravilhas foram feitos exclusivamente pelos apóstolos ou por pessoas próximas. O propósito principal dos milagres era autenticar a mensagem dos apóstolos a respeito de Jesus como o prometido Rei messiânico. Isto tem sido verdade em todos os períodos da história da redenção: os milagres autenticaram a revelação de Deus em todas as fases-chave da história do reino ao longo do Antigo Testamento. O mesmo é verdade neste período de transição chave no livro de Atos. É exatamente aqui que se concentram as obras do Espírito: “trazem ordem ao plano de Deus de estabelecer seu reino na Terra com Cristo como rei”.

Neste momento, no livro de Atos, não havia uma Bíblia completa, não havia uma mensagem unificada do Espírito Santo, e por isso ele teve que autenticar a sua verdadeira mensagem através de milagres para distinguir quais mensagens eram verdadeiras. Agora as Escrituras estão concluídas. Temos um Cânon completo das Escrituras. Por causa disso, o Espírito Santo não precisa mais autenticar sua mensagem através de algum tipo de meio externo, como milagres.

Antes do Cânon completo das Escrituras, o Espírito Santo autenticou Sua mensagem através de sinais e maravilhas. Agora que a Bíblia está completa, a própria é auto-autenticada, o que significa que não precisa de nada fora de si para validar a sua mensagem.

O Espírito Santo autentica diretamente sua Palavra completa. Como diz 1 João 5:6: “o próprio Espírito testifica da veracidade da mensagem de Jesus Cristo”. Se alguém disser algo contrário às Escrituras, sabemos que não é verdade porque temos uma Bíblia completa. Eles ainda não tinham esse privilégio e, portanto, o Espírito Santo teve que fazer algo externo para autenticar a Sua mensagem.

Aqui está a chave: antes do Cânon completo das Escrituras, o Espírito Santo autenticou Sua mensagem através de sinais e maravilhas. Agora que a Bíblia está completa, a própria é auto-autenticada, o que significa que não precisa de nada fora de si para autenticar a Sua mensagem. Visto que o Espírito Santo inspirou a própria palavra, ele pode atestar a sua veracidade iluminando o coração do ouvinte, isto é, removendo qualquer dúvida ou questionamento sobre sua veracidade. Porquê a Bíblia completa, é auto-autenticada através da iluminação do Seu Autor, portanto sinais e maravilhas não são mais necessários.

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Scott Aniol | Brasil

Scott Aniol, PHD, é o vice presidente executivo e o editor chefe do ministério G3. Ele é palestrante internacional, atuando em diversas igrejas, conferencias, faculdades, e seminários. Scott já escreveu diversos livros e dezenas de artigos.

Você pode saber mais a respeito dele em www.scottaniol.com Scott e sua esposa, Becky, tem quatro filhos. Caleb, kate, Christopher e Caroline.