Cristãos devem fazer orações imprecatórias?

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Provavelmente, uma das questões mais desafiadoras nos Salmos para os cristãos modernos é a linguagem do lamento e até mesmo da imprecação presente nas canções inspiradas por Deus. Certamente, deste lado da cruz, esse tipo de linguagem não tem lugar para os cristãos, certo?

Considere o Salmo 137 por exemplo, ele tem uma linguagem horrível e temas impecórios amedrontadores.

Junto aos rios da Babilônia nós nos sentamos e choramos com saudade de Sião.

Ó cidade de Babilônia, destinada à destruição, feliz aquele que lhe retribuir o mal que você nos fez!
Feliz aquele que pegar os seus filhos e os despedaçar contra a rocha! Salmo 137: 1,8 e 9.

Certamente é verdade que este salmo é um dos poemas mais lindos e cuidadosamente elaborados de toda a Escritura, mas também é verdade que é um dos salmos mais perturbadores. Certamente Deus não quer que cantemos sobre lançar os filhos de nossos inimigos contra a rocha, não é? É interessante que Isaac Watts parafraseou quase todos os 150 salmos e os interpretou à luz do Novo Testamento, aplicando-os à igreja do Novo Testamento, mas não chegou nem perto do Salmo 137.

Como esse salmo horrivelmente deprimente pode ser relevante para nós hoje?

Este é um exemplo perfeito para (a) entender a colocação do salmo no fluxo canônico e (b) o propósito de sua poesia para nos levar ao seu uso adequado. Considerando sua colocação nos cinco movimentos, o foco do Salmo 137 no exílio babilônico pode parecer estranho. O Movimento III (deste Salmo) é aquele focado principalmente na realidade do exílio babilônico; por que tão tarde na cantata os editores incluíram um salmo tão sombrio tendo o exílio como tema? Por que os israelitas cantariam sobre os horrores do exílio quando já haviam sido “redimidos da angústia e colhidos das terras” (Sm 107:2–3)? Eles não deveriam apenas agradecer e comemorar em vez de lamentar?

Responder a essa pergunta nos dá a primeira pista de por que esse salmo e outros salmos de lamento como ele são efetivamente aplicáveis ​​aos cristãos hoje, assim como eram para os israelitas que já haviam retornado do exílio.

Devemos reconhecer o propósito que os Salmos tem de nos moldar e transformar. Eles não se destinam apenas a expressar o que está no coração do adorador; pelo contrário, eles são dados a Israel – e a nós – para moldar nosso interior. O Salmo 137 não é uma explosão precipitada de ódio; o tema dele é complexo e exigiu muito esforço para compor e existe evidência suficiente de que o poeta o escreveu com o propósito de formatar algo em nossos corações. Qual o efeito que esse Salmo pretende ter em nossos corações?

Bem, observe a linguagem específica usada no Salmo 137, especialmente na imprecação. O salmista usa o termo-chave “bem-aventurado” duas vezes (vs 8-9). Este termo importante encerra os Salmos 1 e 2 e aparece em todos os Salmos, traz a ideia de florescer debaixo do governo de Deus e os salmos nos ajudam a realiza-lo. Observe também o termo “despedaçar” no versículo 9; essa palavra aparece apenas uma outra vez nos Salmos:

Tu as quebrarás com vara de ferro e as despedaçarás como a um vaso de barro”. Salmo 2.9

Quem no Salmo 2 é aquele prometido para “despedaçar” os ímpios? O Ungido de Javé, o maior Filho de Davi, a quem Davi chama de “Senhor” no Salmo 110. O Salmo 2 profetiza que Jesus, o Messias, despedaçará os ímpios, e o poeta do Salmo 137 deliberadamente usa o mesmo termo em sua oração imprecatória como uma alusão a essa promessa. Deus prometeu especificamente através do profeta Isaías que destruiria a Babilônia, usando essa mesma linguagem assertiva que o poeta do Salmo 137 usa: “Seus filhos serão despedaçados diante de seus olhos” (Is 13:16).

Isso demonstra um dos principais propósitos transformadores do lamento: o lamento que clama a Deus e lhe pede especificamente para fazer o que prometeu, na verdade, forma confiança dentro de nós. As orações imprecatórias dos Salmos não são expressões de raiva gratuita e vingança feitas em um momento de paixão; são expressões de confiança cuidadosamente elaboradas no que Deus já havia prometido que faria e, ao cantar essas expressões, elas formam corações confiantes mesmo se (ou melhor, quando) o adorador não sentir tal confiança naquele momento.

As orações imprecatórias dos Salmos não são expressões de raiva gratuita e vingança feitas em um momento de paixão; são expressões de confiança cuidadosamente elaboradas no que Deus já havia prometido que faria e, ao cantar essas expressões, elas formam corações confiantes

É exatamente assim que os Salmos 135–137 funcionam no fluxo do Movimento V. Esses salmos formam uma ponte entre os Cânticos de Degraus (Salmos 120–134) e os salmos davídicos finais (Salmos 138–145), que levam às expressões culminantes de louvor. Esses salmos reafirmam o princípio fundamental introduzido nos Salmos 1 e 2 que se destina a formar corações confiantes: O Senhor determina o destino dos ímpios e dos justos. Um salmo de lamento como este é apenas outra forma de afirmar “O Senhor reina”.

Além disso, devemos também lembrar o propósito da poesia. Como vemos repetidamente nos Salmos, um salmo não é uma declaração isolados de fatos históricos ou uma narrativa inventada. Um Salmo é uma obra de arte cujo propósito é incorporar artisticamente mais do que simplesmente uma mera informação. Uma canção permite ao autor expressar aspectos da experiência que são mais profundos do que palavras abstratas, permitindo o artista experimente por si mesmo as realidades da imagem que o poeta pinta de uma forma que não seria possível se ele tivesse simplesmente descrito uma experiência própria. Quando cantamos um poema, entramos no mundo que o poeta criou, caminhamos com ele pela experiência e podemos experimentar por nós mesmos o que o poeta pretende que experimentemos.

Assim, em um salmo como o Salmo 137, o poeta recria para nós artisticamente o evento histórico de modo que possamos experimentá-lo por nós mesmos.

Portanto, isso nos leva à pergunta de um milhão de reais: devemos orar imprecações como a do final do Salmo 137? Deus realmente quer que oremos para que os filhos de nossos inimigos sejam despedaçados contra as rochas? Nós lemos os três versículos finais deste salmo e ficamos enojados e ficamos horrorizados.

Esse é o ponto: é exatamente isso que Deus quer sentir. Devemos sentir horror e desgosto com a noção de rebelião contra Deus, adulteração de sua adoração e destruição de seu povo. O autor usa essa linguagem para captar artisticamente as emoções da experiência de injustiça, violência e exílio.

Em outras palavras, canções de lamentação e até mesmo de imprecação nos lembram que todos os inimigos de Javé ainda não foram destruídos, e também devemos lutar contra o pecado dentro de nós. Como vemos nos Salmos, esse lembrete é o que impede que nossa confiança seja infundada e que nosso louvor seja barato e vazio.

A confiança e o louvor formados por intermédio do lamento e da confissão são demasiadamente profundos.

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Scott Aniol | Brasil

Scott Aniol, PHD, é o vice presidente executivo e o editor chefe do ministério G3. Ele é palestrante internacional, atuando em diversas igrejas, conferencias, faculdades, e seminários. Scott já escreveu diversos livros e dezenas de artigos.

Você pode saber mais a respeito dele em www.scottaniol.com Scott e sua esposa, Becky, tem quatro filhos. Caleb, kate, Christopher e Caroline.